segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Carlos Magno e a Rainha Chardonnay (1 de 2)


Bruxelas - Rue des Bouchers,
A maioria dos enófilos prefere tinto a branco. Ainda hoje se ouve, aqui e ali, o preconceito de que "brancos são vinhos menores". A maioria dos tintos revela mais complexidade, enquanto os brancos são reconhecidos pela acidez e frescor. Tudo tem sua hora e vez; por exemplo, não me imagino desarrolhando um pesado malbec no Réveillon na praia! Entre as castas brancas reina soberana uma rainha: Chardonnay, e diz a lenda que ela foi escolhida pelo imperador Carlos Magno (742-814).
Para começar ela raramente decepciona no momento do plantio. Adapta-se aos solos calcários e arenosos, aceita climas quentes e frios, suporta bem o vento da Austrália, a chuva da Serra Gaúcha e a aridez de Mendoza, ou seja, ela não tem frescura... a não ser na boca. Na sua região de origem, a Borgonha, vai bem ao norte em Chablis, como ao sul em Macon (Pouilly Fuissé) como no meio (Coté D'Or). É fácil de cultivar e amadurece cedo, o que reduz o risco de perdas (chuva, vento e granizo) quando se aproxima a colheita.
Também se destaca no quesito versatilidade. Pode ser deixada ao Deus dará, ou sofrer intervenção humana. No primeiro caso produzirá vinhos alegres, minerais, à maçã e pera, para beber descontraidamente; no segundo, com a concentração no pé (poda verde), fermentação malolática e descanso em barris de carvalho, puxará para manteiga, abacaxi e pêssego, preenchendo a boca e puxando por notas fumadas amadurecidas no carvalho. Esses "reservas" podem alcançar complexidade superior a certos tintos, como o Gaya y Rey, de Angelo Gaia do Piemonte, Cervaro Della Salla, de Antinori, um Bramare argentino, de Paul Hobbs, que o amigo Toninho ofereceu no Nectarine em Buenos Aires, momentos especiais. O melhor da Chardonnay está no equilíbrio, o meio termo entre frescor e firmeza, pureza e intensidade, leveza demais e baunilha de menos. Esses são os vinhos que tenho procurado recentemente, como os excelentes Pulenta e Catena argentinos ou o Villa Francioni nacional.
Depois da lua de mel, MH e eu passamos 15 anos fabricando filhos, pagando BNH, comprando terreno e construindo casa, sem dinheiro para viajar à Europa. Lá por 1990 chegou a vez. A Vasp quebrou o monopólio da Varig inaugurando um voo mais barato, com novos MD-11 para Bruxelas. Tantos anos depois o choque de civilização começou justamente em Brugges, aquele encanto na Bélgica. Rodamos pela Alemanha, França e norte da Itália até voltarmos a Bruxelas, com dólares no bolso. Não se usava cartão de crédito. Na última noite escolhemos o que nos pareceu o mais simpático dentre as dezenas de restaurantes da Rue de Bouchers (rua dos açougueiros), com barracas expondo os frutos do mar à porta, mas sem as mesas de fora, porque era janeiro, o auge do inverno. Aliás, grande sensação aquele frio seco, eu advogado a viajar nas férias forenses.
Embora viagem econômica, Maria Helena e eu buscando  hotéis três estrelas que, porém, em 1990 tinham padrão superior aos quatro estrelas nacionais, na última noite da viagem constatamos que "sobraram" dólares. Puxei a carta de vinhos e pedi Corton Charlemagne Grand Cru Louis Latour por qualquer coisa em torno de US$ 300, muito acima do padrão da viagem! Mas como lembra o agente 007 que fez 50 anos, "you only live twice" (apenas se vive duas vezes), uma brincadeira em relação ao determinismo de que "a vida é uma só". Aquele Corton Carlos Maior foi pura emoção, algo superior a qualquer coisa semelhante que havia tomado, como dito um choque de civilização.
Resta saber o que o rei dos francos Carlos Magno, há 1.200 anos sepultado na magnífica capela octavada de Aachen (Aix-la-Chapelle), tem a ver com os grandes brancos que perpetuaram o seu nome na Borgonha. Vamos voltar ao tempo da derrocada do Império Romano, das invasões bárbaras, e talvez reencontrar as Walkírias sobrevoando os campos de batalha em cavalos voadores, para recolher os soldados mortos e levá-los ao paraíso.
Até porque no inferno não servem chardonnay.


Por: Carlos Celso Orcesi da Costa

Nenhum comentário:

Postar um comentário