A maioria dos enófilos
prefere tinto a branco. Ainda hoje se ouve, aqui e ali, o preconceito de que
"brancos são vinhos menores". A maioria dos tintos revela mais
complexidade, enquanto os brancos são reconhecidos pela acidez e frescor. Tudo
tem sua hora e vez; por exemplo, não me imagino desarrolhando um pesado malbec
no Réveillon na praia! Entre as castas brancas reina soberana uma rainha:
Chardonnay, e diz a lenda que ela foi escolhida pelo imperador Carlos Magno
(742-814).
Para começar ela
raramente decepciona no momento do plantio. Adapta-se aos solos calcários e
arenosos, aceita climas quentes e frios, suporta bem o vento da Austrália,
a chuva da Serra Gaúcha e a aridez de Mendoza, ou seja, ela não tem frescura...
a não ser na boca. Na sua região de origem, a Borgonha, vai bem ao norte em
Chablis, como ao sul em Macon (Pouilly Fuissé) como no meio (Coté D'Or). É
fácil de cultivar e amadurece cedo, o que reduz o risco de perdas (chuva, vento
e granizo) quando se aproxima a colheita.
Também se destaca no quesito
versatilidade. Pode ser deixada ao Deus dará, ou sofrer intervenção
humana. No primeiro caso produzirá vinhos alegres, minerais, à maçã e pera,
para beber descontraidamente; no segundo, com a concentração no pé (poda
verde), fermentação malolática e descanso em barris de carvalho, puxará para
manteiga, abacaxi e pêssego, preenchendo a boca e puxando por notas fumadas
amadurecidas no carvalho. Esses "reservas" podem alcançar complexidade
superior a certos tintos, como o Gaya y Rey, de Angelo Gaia do Piemonte,
Cervaro Della Salla, de Antinori, um Bramare argentino, de Paul Hobbs, que o
amigo Toninho ofereceu no Nectarine em Buenos Aires,
momentos especiais. O melhor da Chardonnay está no equilíbrio, o meio termo entre
frescor e firmeza, pureza e intensidade, leveza demais e baunilha de menos.
Esses são os vinhos que tenho procurado recentemente, como os excelentes
Pulenta e Catena argentinos ou o Villa Francioni nacional.
Depois da lua de mel, MH e eu passamos
15 anos fabricando filhos, pagando BNH, comprando terreno e construindo casa,
sem dinheiro para viajar à Europa. Lá por 1990 chegou a vez. A Vasp quebrou o
monopólio da Varig inaugurando um voo mais barato, com novos MD-11 para Bruxelas.
Tantos anos depois o choque de civilização começou justamente em
Brugges, aquele encanto na Bélgica. Rodamos pela Alemanha, França e norte da
Itália até voltarmos a Bruxelas, com dólares no bolso. Não se usava cartão de
crédito. Na última noite escolhemos o que nos pareceu o mais simpático dentre
as dezenas de restaurantes da Rue de Bouchers (rua dos açougueiros),
com barracas expondo os frutos do mar à porta, mas sem as mesas de fora, porque
era janeiro, o auge do inverno. Aliás, grande sensação aquele frio seco, eu
advogado a viajar nas férias forenses.
Embora viagem econômica, Maria Helena e
eu buscando hotéis três estrelas que, porém, em 1990 tinham padrão
superior aos quatro estrelas nacionais, na última noite da viagem constatamos
que "sobraram" dólares. Puxei a carta de vinhos e pedi Corton
Charlemagne Grand Cru Louis Latour por qualquer coisa em torno de US$
300, muito acima do padrão da viagem! Mas como lembra o agente 007 que fez
50 anos, "you only live twice" (apenas
se vive duas vezes),
uma brincadeira em relação ao determinismo de que "a vida é uma só".
Aquele Corton Carlos Maior foi pura emoção, algo superior a qualquer coisa
semelhante que havia tomado, como dito um choque de
civilização.
Resta saber o que o
rei dos francos Carlos Magno, há 1.200 anos sepultado na magnífica capela
octavada de Aachen (Aix-la-Chapelle), tem a ver com os grandes brancos que
perpetuaram o seu nome na Borgonha. Vamos voltar ao tempo da derrocada do
Império Romano, das invasões bárbaras, e talvez reencontrar as Walkírias
sobrevoando os campos de batalha em cavalos voadores, para recolher os
soldados mortos e levá-los ao paraíso.
Até porque no inferno
não servem chardonnay.
Por: Carlos Celso Orcesi da Costa
Por: Carlos Celso Orcesi da Costa
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